Ana Maria Primavesi |
Por Ana Maria Primavesi,
agrônoma, agricultora e pecuarista,
é uma das precursoras da
agricultura ecológica no Brasil.
A terra gruda nos sapatos, suja os assoalhos e incomoda as pessoas da cidade, que querem tudo limpinho e se defendem contra a “sujeira”, asfaltando ruas e estradas e usando automóveis, para não pisar no barro.
A terra produz os alimentos e as colheitas comerciais como café, açúcar, cacau, algodão, chá-da-índia, guaraná e cana para o álcool-combustível, fibras como sisal e juta, óleos como o de mamona, babaçu e dendê e látex, e condimentos como pimenta-do-reino, cravo, canela e louro. Armazena água nos seus poros para as plantas e, em depósitos profundos, para as fontes e nascentes dos rios e das represas das usinas hidrelétricas.
A terra forma o nosso corpo, saúde e inteligência. Não porque a Bíblia conte que o homem foi feito de barro, mas porque um óvulo fecundado nunca formaria um corpo de nada. Ele fornece somente o padrão genético segundo o qual se forma o ser vivo. Mas o corpo é construído de minerais. E estes as plantas retiram da terra e os fornecem a todos os viventes. Do corpo decomposto ou cremado resta somente um punhado de cinza, mineral.
Jeca-tatu |
Antigamente, nós a chamávamos, com carinho de Mãe Terra, porque dela nasce e a ela volta o homem. E nos orgulhávamos de ser filhos da terra porque o que somos, os somos por ela. Em terra sadia e forte, seremos fortes, sadios, dinâmicos e inteligentes. Mas quanto ela é exausta, decaída, doente e devastada, nós, seus filhos, somos fracos, doentes e indolentes. Jecas-tatus. Estudamos muito para descobrir por que a inteligência da juventude decresce e os currículos escolares têm de ser cada vez mais facilitados. Destruímos a alma no barulho e nas drogas e destruímos o corpo com alimentação biologicamente incompleta e condimentada por resíduos tóxicos. Depois nos admiramos de que o circuito alma-cérebro não funcione mais. É a terra, portanto, que nos faz progredir ou cair na miséria, sentir bem-estar ou nos arruinarmos, sermos poderosos e gloriosos ou submissos e escravos.
Lembram-se dos povos que sumiram da história? Dos sumérios, egípcios, estruscos, gregos, romanos, incas, astecas, mongóis e hunos? Foram arrasados porque se esqueceram dos campos. Um grande presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln, disse: “Destruam as cidades e conservem os campos, que as cidades ressurgirão. Destruam os campos e conservem as cidades, e estas, sucumbirão”. Cidades vivem do campo. Não adianta. É a terra que as mantêm.
“Destruam as cidades e conservem os campos, que as cidades ressurgirão. Destruam os campos e conservem as cidades, e estas, sucumbirão”. |
Quando a terra era jovem, vigorosa e virgem, uma vegetação exuberante a cobria e flores a enfeitavam. As árvores lhe davam sombra e as plantas, com suas raízes, a abraçavam carinhosamente e estendiam macia manta de folhas. Estava abrigada e protegida, zelada e amada. O sol a beijava furtivamente e a água da chuva a acariciava em suave deslizar. Era tudo festa.
E viemos nós, homens, em busca de alimentos. Ela podia dar e estava ansiosa para ajudar-nos. Tomava-nos por amigos e quis se entregar, como esposa dedicada. Mas nós não entendemos. Não quisemos amizade nem dedicação. Quisemos explorá-la, dominar e violar, estupidamente. Quisemos enriquecer rapidamente. E a arruinamos. Agora ela é fraca, doente, estragada, prostituta que todas usam e pela qual ninguém zela.
"Tu és pó e ao pó retornarás". |
Sua pele macia se tornou incrustada, dura e rachada. Sulcos profundos marcaram sua face, cavados pelas lágrimas que a chuva lhe emprestou. Nós que sempre achamos uma palavra “científica” para explicar, chamamos a isso “erosão”. Chagas a cobrem como feridas de lepra, e nós as chamamos de “vossorocas”. Perdeu sua beleza, saúde e fertilidade. Não pode mais gerar colheitas fartas e nutritivas - mas somente esses pingos de safra, sem sabor e sem valor para a vida.
As plantas que cultivamos não formam mais unidade com a terra, não são mais “ecotipos”, como nós dizemos, não se adaptam ao que ela pode oferecer. Criamos plantas estranhas, muito estranhas, de hábitos exóticos. Embora ainda se chamem milho, arroz, algodão ou cana-de-açúcar, não pode mais usar o que a terra oferece, nem se satisfazer com o que ela pode dar. Não é mais mãe, mas simplesmente suporte. Temos de “adaptá-la” às nossas culturas, que não são mais amigas, e sim orgulhosas, desinteressadas, até hostis.
E nos orgulhamos de nosso trabalho genético e de nossos híbridos. Até as chamamos de HRV, ou variedades de alta resposta. Variedades que, na verdade, apenas suportam elevadas quantidades de adubos. A terra que, rindo, dava colheitas fartas, de repente não presta mais. É coberta com quantidades excessivas de calcário e salgada com adubos ácidos e agressivos. É compactada com máquinas pesadas e deixada nua, exposta ao sol abrasador e ao impacto de chuvas violentas. Banhada com fedorentos venenos as plantas amigas não nascem mais. Justo as que queriam curar suas