José Almir Cirilo - Professor
Titular, Departamento de Engenharia Rural, Escola Superior de Agricultura Luiz
de Queiroz, Universidade de São Paulo, mvfolega@esalq.usp.br
Suzana M.G.L. Montenegro -
Pós-doutorando, Departamento de Engenharia Rural, Escola Superior de
Agricultura Luiz de Queiroz, Universidade de São Paulo, rmsroman@esalq.usp.br
José Nilson B. Campos - Professor
Associado, Departamento de Engenharia Rural, Escola Superior de Agricultura
Luiz de Queiroz, Universidade de São Paulo, rdcoelho@esalq.usp.br
RESUMO
As
características edafo-climáticas e sócio-econômicas do semi-árido brasileiro
requerem tecnologias específicas de utilização e conservação dos recursos
hídricos. Além do quadro de escassez, a utilização incorreta dos recursos
hídricos aumenta a fragilidade da região ao processo de desertificação. O
impacto de possíveis mudanças climáticas pode ainda interferir negativamente em
processos produtivos, na saúde e na qualidade de vida na região, pela redução
da disponibilidade hídrica. Nesse contexto, devem-se abordar o problema de
escassez de água e abastecimento a comunidades difusas, levando em consideração
tecnologias alternativas, de baixo custo e fácil apropriação pela população.
Algumas dessas alternativas e a relevância das obras de integração entre bacias
hidrográficas para a região são discutidas neste artigo, destacando a
importância da gestão dos recursos hídricos com foco na conservação e uso
sustentável.
INTRODUÇÃO
A
disponibilidade e usos da água na região Nordeste do Brasil, particularmente na
região semiárida, continuam a ser uma questão crucial no que concerne ao seu
desenvolvimento. É fato que grandes esforços vêm sendo empreendidos com o
objetivo de implantar infra-estruturas capazes de disponibilizar água suficiente
para garantir o abastecimento humano e animal e viabilizar a irrigação.
Todavia, esses esforços ainda são, de forma global, insuficientes para resolver
os problemas decorrentes da escassez de água, o que faz com que as populações
continuem vulneráveis à ocorrência de secas, especialmente quando se trata do
uso difuso da água no meio rural. De qualquer modo, a ampliação e o
fortalecimento da infra-estrutura hídrica, com uma gestão adequada, constituem
requisitos essenciais para a solução do problema, servindo como elemento básico
para minimizar o êxodo rural e promover a interiorização do desenvolvimento.
Além de obras, a última década do século passado
trouxe para o país um novo paradigma: a necessidade da gestão dos recursos
hídricos. De fato, a partir dessa época, implantou-se nos estados, com o
suporte da União e da Lei nº 9433/1997, a chamada Lei das Águas, uma nova
filosofia: controle do uso por meio de instrumentos como outorga e da, ainda
incipiente, cobrança pelo uso da água bruta; planos de recursos hídricos para
as bacias hidrográficas e os estados; estruturação de entidades gestoras e
organismos de bacia; e programas de obras estruturadoras.
Pode-se
até afirmar que, em função das dificuldades históricas, os maiores avanços na
gestão dos recursos hídricos, comparando-se as regiões do país, vêm ocorrendo
no Nordeste.
CARACTERIZAÇÃO FÍSICA DO NORDESTE
SEMI-ÁRIDO
O
Nordeste do Brasil situa-se entre as latitudes 1º e 18º 30’ S e as longitudes
34º 30’ e 40º 20’ W e ocupa a área de 1.219.000 km2, que equivalem a
aproximadamente um quinto do território brasileiro.
A região abrange os estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte,
Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, nos quais vivem 18,5 milhões de
pessoas e dos quais 8,6 milhões estão na zona rural (Cirilo et al. 2007: 33).
O clima
da porção semi-árida é caracterizado por um regime de chuvas fortemente
concentrado em quatro meses (fevereiro-maio) e uma grande variabilidade inter-anual.
As fortes secas que flagelam a região sempre moldaram o comportamento das
populações e foram preponderantes para a formulação de políticas públicas
regionais.
O
denominado Polígono das Secas foi criado pela Lei nº 175 de janeiro de 1936,
como área a ser objeto das políticas de combate às secas. O Polígono foi alvo
de várias modificações, tendo sido, inclusive, inserido na Constituição Federal
de 1946. Atualmente, o Polígono foi substituído pela Região Semiárida do Fundo
Constitucional de Financiamento do Nordeste (MMA 2004). O Ministério da
Integração Nacional (Brasil 2005, 2007) redefiniu os limites da região
semi-árida do Nordeste.
POTENCIALIDADES HÍDRICAS
REGIONAIS: ÁGUAS SUPERFICIAIS
O
Nordeste semi-árido é uma região pobre em volume de escoamento de água dos
rios. Essa situação pode ser explicada em função da variabilidade temporal das
precipitações e
das características geológicas dominantes, onde há
predominância de solos rasos baseados sobre rochas cristalinas e,
conseqüentemente, baixas trocas de água entre o rio e o solo adjacente. O resultado
é a existência de densa rede de rios intermitentes, com poucos rios perenes e
destaque para os rios São Francisco e Parnaíba. Os rios de regime intermitente
são encontrados na porção nordestina que se estende desde o Ceará até à região
setentrional da Bahia. Entre estes, destaca-se o Jaguaribe, no Ceará, pela sua
extensão e potencial de aproveitamento: em sua bacia hidrográfica encontram-se
alguns dos maiores reservatórios do Nordeste, como Castanhão e Orós.
A
potencialidade hídrica superficial é representada pela vazão média de longo
período em uma seção de rio. Trata-se de um indicador importante, pois possibilita
uma primeira avaliação da carência ou abundância de recursos hídricos de forma
espacializada numa dada região.
A Figura 1 indica as potencialidades
hídricas superficiais expressas por unidade de área (indicadas em litros por
segundo por quilômetro quadrado) nas diferentes bacias hidrográficas da região,
como resultado dos estudos hidrológicos desenvolvidos para o trabalho da
ANA/MMA intitulado “Atlas Nordeste: abastecimento urbano de água” (ANA 2005).
POTENCIALIDADES HÍDRICAS REGIONAIS: ÁGUAS
SUBTERRÂNEAS
No que se refere à ocorrência de águas subterrâneas, como o território
nordestino é em mais de 80 % constituído por rochas cristalinas, há
predominância de águas com teor elevado de sais captadas em poços de baixa
vazão: da ordem de 1 m³ h-1. Exceção ocorre nas formações sedimentares, onde as
águas normalmente são de melhor qualidade e pode-se extrair maiores vazões, da
ordem de dezenas a centenas de m³ h-1, de forma contínua (Cirilo 2008). A
Figura 2 mostra, de forma esquemática, a ocorrência dos aqüíferos no Nordeste.
Rebouças (1997) ressaltou, a partir de estudos anteriores, que as
reservas de água doce subterrânea nas bacias sedimentares do Nordeste permitem
a captação anual de 20 bilhões de m³ por ano, sem colocar em risco as reservas
existentes. Esse volume equivale a 60 % da capacidade do reservatório de
Sobradinho, na Bahia (34 bilhões de m³), principal responsável pela regularização
das vazões do rio São Francisco; ou o triplo da capacidade do açude Castanhão
(6,7 bilhões de m³). Trata-se, portanto, de volume considerável de água.
Segundo Cirilo (2008), é necessário ressaltar, no entanto, as peculiaridades
dessas reservas, que são:
• concentração espacial (no caso do semi-árido, Piauí e Bahia detêm os
principais aqüíferos. No restante da região, as ocorrências são de manchas
sedimentares esparsas);
• em muitos aqüíferos, a profundidade encarece o custo de implantação e
operação dos poços (Chapada do Araripe, município de Bodocó, no lado pernambucano, há um
poço com 950 m de profundidade e
capacidade de 140 m³ h-1, onde o nível dinâmico da água está a mais de 300 m
abaixo da superfície do solo); e• existe muita incerteza sobre os mecanismos de recarga dos aqüíferos
sedimentares do semi-árido, bem como sobre a dimensão dessa recarga; por essa
razão, uma exploração intensiva pode colocar em risco essas fontes.
Pelas razões expostas, Cirilo (2008) afirmou que as águas subterrâneas
devem ser, nas reservas sedimentares do semi-árido nordestino, usadas
criteriosamente, de preferência para o abastecimento humano (diversas cidades
do Nordeste situadas sobre as bacias sedimentares ou próximas a elas são
abastecidas por essas fontes) e que não faz sentido considerar que essa
potencialidade seja capaz de atender às demandas regionais, até porque seriam
necessárias grandes transferências de água para isso.
SAÚDE PÚBLICA
A
incidência de doenças de veiculação hídrica associadas à má qualidade da água
consumida por parte significativa da população do semi-árido, especialmente a
que reside nas zonas rurais, e a precariedade ou inexistência de estruturas de
tratamento de esgoto, reflete, principalmente, nos indicadores de mortalidade
infantil na região. Costa (2009) desenvolveu pesquisa em que relacionou a queda
significativa de doenças, como por exemplo a diarreia, sobre a população
infantil de áreas rurais de Pernambuco, após a implantação de sistemas
regulares de abastecimento de água ou mesmo de tratamento de água em sistemas
simplificados.
OCORRÊNCIA DE PROCESSOS DE
DESERTIFICAÇÃO NO NORDESTE
A
Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD) conceituou desertificação
como o processo de degradação das terras em regiões áridas, semi-áridas e sub-úmidas
secas, em decorrência de fatores como a ação antropogênica e as mudanças
climáticas. Essa degradação é a perda ou redução da produtividade econômica ou
biológica dos ecossistemas secos causada pela erosão do solo, deterioração dos
recursos hídricos e perda da vegetação natural.
De acordo
com estudo do Ministério do Meio ambiente (BRASIL 2002: 42), as áreas do
Nordeste com sinais extremos de degradação, os chamados “Núcleos de Desertificação”,
são Gilbués no Piauí, Irauçuba no Ceará, Seridó na fronteira dos estados da Paraíba
e Rio Grande do Norte e Cabrobó, em Pernambuco. Estima-se que o processo de
desertificação vem comprometendo uma área de 181.000 km2 decorrente de impactos
difusos e concentrados sobre o território da região. A super-exploração dos recursos naturais nessa região tem efeitos de médio prazo
sobre a qualidade ambiental na região, onde predominam, como atividades
econômicas, as culturas de subsistência, a pecuária extensiva e alguns
perímetros de agricultura irrigada. Muitas áreas irrigadas apresentam sinais de
salinização pela deficiência ou ausência de drenagem dos solos. Em cerca de 600
mil hectares irrigados no Nordeste registram-se sinais de salinização e/ou de
compactação do solo em aproximadamente 30 % da área (MMA 2002).
IMPACTOS POTENCIAIS DAS MUDANÇAS
CLIMÁTICAS
O
relatório do IPCC, Intergovernmental Panel on Climate Change, denominado IPCC
AR4 (disponível no site http://ipcc-wg1.ucar.edu/) sobre as mudanças climáticas
concluiu, com mais de 90 % de confiança, que o aquecimento global dos últimos
50 anos é causado pelas atividades humanas. Segundo Marengo (2007), os
resultados deste estudo para a América do Sul indicam que as mudanças
climáticas mais intensas para o fi nal do Século XXI, relativas ao clima atual,
vão acontecer na região tropical, especificamente na Amazônia e no Nordeste do
Brasil. Estas duas regiões são, portanto, as mais vulneráveis do Brasil às
mudanças de clima.
Numa
atmosfera mais aquecida espera-se, de modo geral, a ocorrência de precipitações
pluviais mais intensas nas regiões mais úmidas, além de veranicos e ondas de
calor mais freqüentes. Na região semi-árida, a maioria dos cenários de mudanças
climáticas sinaliza para, com o aumento da temperatura: o aumento da evaporação
nos corpos d’água e, conseqüentemente, a redução do volume escoado nos mesmos;
a redução da recarga dos aqüíferos em até 70 % até o ano 2050 e, portanto, da
realimentação da vazão dos rios; a concentração do período chuvoso em um espaço
de tempo ainda menor, com redução da precipitação (cenário pessimista: para um
aumento da temperatura de 2 a 4 ºC, 15 a 20 % a menos de chuva; cenário
otimista: 1 a 3 ºC mais quente, 10 a 15 % de redução de chuva); a tendência de
“aridização” da região, com a substituição da caatinga por vegetação mais
típica de regiões áridas, como as cactáceas.
A
alteração dos processos hidrológicos na região semi-árida pode significar
diferentes tipos de prejuízos para as comunidades que vivem nessas regiões. Por
exemplo, é provável que ocorra aumento da salinização da água subterrânea e
superficial em virtude da elevação da evapotranspiração (Bates et al. 2008). Além
disso, nas bacias hidrográficas dessas regiões, as conseqüências de mudanças no
regime de vazões podem trazer prejuízos para a geração de energia hidroelétrica
e para a manutenção de projetos de irrigação e abastecimento da população.
Devem ser realizados estudos hidrológicos para predição e avaliação das
conseqüências da mudança do regime de vazões e dos processos
hidrológicos nas
bacias do Semi-Árido Nordestino. Pinto & Assad (2008) destacaram que na
maior parte do Brasil a elevação da evapotranspiração deverá, com seu
conseqüente reflexo na deficiência hídrica do solo,
acarretar um crescimento do risco climático para a produção agrícola. Baseado
em cenários do IPCC e simulações de cenários com as condições futuras para
plantio de diferentes culturas, os referidos autores destacaram que o aumento
de temperatura deverá diminuir o número de municípios com potencial agrícola
nos anos de 2020, 2050 e 2070. Segundo ainda os mesmos autores, com a
estimativa pelo IPCC de aridificação do semi-árido do Brasil e da perda da
produtividade de várias culturas, deverão ser produzidas conseqüências do ponto
de vista de segurança alimentar na região.
SOLUÇÕES PARA PROBLEMA DA ÁGUA NO
SEMI-ÁRIDO NORDESTINO
As secas e suas conseqüências
Desde os primórdios, as secas marcaram a história do Nordeste. Fernão Cardin (citado por
Souza 1979) relata que houve uma grande seca e esterilidade na província
(Pernambuco) e desceram do sertão, ocorrendo-se aos brancos no litoral cerca de
quatro ou cinco mil índios. Também merece destaque a citação ao Professor João
de Deus de Oliveira (Paulino 1992) que relata movimentos dos Tabajaras e
Kariris acossados pelas secas. Depreende-se dessas narrativas que os movimentos
migratórios já aconteciam dos sertões já aconteciam mesmo em uma época de baixa
densidade demográfica.
A
ocupação dos sertões foi bastante retardada em decorrência, principalmente, das
secas. Contudo, após uma carta régia, os criadores de gado tiveram que adentrar
os sertões. De 1845 a 1876, aconteceram 32 anos sem secas intensas, que
resultaram no aumento das populações e dos rebanhos sem o aumento da
infra-estutura hídrica. Veio, então, uma seca intensa e duradoura de 1877 a
1879, que resultou em trágica mortandade da região com estimativa de cerca de
500.000 óbitos. Foi a partir desse choque que atingiu a sociedade brasileira
que começou uma busca de soluções estruturais (Campos & Studart 1997). Foi
nessa seca, que se atribui a Dom Pedro II a frase: “venderei a última pedra da
minha coroa antes que um nordestino venha a morrer de fome”.
De
qualquer maneira, foi a partir dessa tragédia que ações mais efetivas, ainda em
ritmo lento, começaram a ser tomadas. O açude Cedro no Ceará, hoje um monumento
histórico de baixa capacidade hidrológica, foi iniciado ainda na época do
Império.
A busca de soluções
O
enfrentamento do problema da escassez de água de qualidade no semi-árido não se
deu através de uma solução única. A implantação de infra-estruturas
hidráulicas, isoladas ou combinadas, constituem as ações necessárias para
mitigar a problemática da água no semi-árido.
A definição
de infra-estrutura adequada e de estratégia de ação ou de gestão deve buscar o
aumento da disponibilidade pelo aumento da eficiência do uso e controle da
demanda e do desperdício, notadamente no que se refere à irrigação.
As
infra-estruturas podem ser agrupadas para atender dois tipos de demanda: a
demanda concentrada e a demanda rural difusa. Na primeira, por exemplo, nas
cidades e perímetros de irrigação grandes vazões são supridas e distribuídas
entre usuários próximos uns dos outros. Na demanda rural difusa, há uma
dispersão espacial muito grande e as soluções são específicas.
Vamos
iniciar pelos problemas regionais associados ao clima para contextualizar as
soluções praticadas e propostas.
Perfuração de poços
No
Nordeste, estima-se que cerca de 100.000 poços tenham sido perfurados. Pelo
fato de a maior parte da região semi-árida do Nordeste ser de formação
cristalina, poços usados como solução para o suprimento das diferentes
necessidades estão sujeitos às seguintes limitações:
• baixas
vazões, na maioria dos casos até 2 m3h-1;
• teores
de sais superior, em parcela significativa dos poços, ao recomendado para
consumo humano; e
• altos
índices de poços secos, dadas as peculiaridades geológicas.
Os poços