1 de out. de 2013

A QUESTÃO DA ÁGUA NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO


José Almir Cirilo - Professor Titular, Departamento de Engenharia Rural, Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, Universidade de São Paulo, mvfolega@esalq.usp.br
Suzana M.G.L. Montenegro - Pós-doutorando, Departamento de Engenharia Rural, Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, Universidade de São Paulo, rmsroman@esalq.usp.br
José Nilson B. Campos - Professor Associado, Departamento de Engenharia Rural, Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, Universidade de São Paulo, rdcoelho@esalq.usp.br
RESUMO
As características edafo-climáticas e sócio-econômicas do semi-árido brasileiro requerem tecnologias específicas de utilização e conservação dos recursos hídricos. Além do quadro de escassez, a utilização incorreta dos recursos hídricos aumenta a fragilidade da região ao processo de desertificação. O impacto de possíveis mudanças climáticas pode ainda interferir negativamente em processos produtivos, na saúde e na qualidade de vida na região, pela redução da disponibilidade hídrica. Nesse contexto, devem-se abordar o problema de escassez de água e abastecimento a comunidades difusas, levando em consideração tecnologias alternativas, de baixo custo e fácil apropriação pela população. Algumas dessas alternativas e a relevância das obras de integração entre bacias hidrográficas para a região são discutidas neste artigo, destacando a importância da gestão dos recursos hídricos com foco na conservação e uso sustentável.
INTRODUÇÃO
A disponibilidade e usos da água na região Nordeste do Brasil, particularmente na região semiárida, continuam a ser uma questão crucial no que concerne ao seu desenvolvimento. É fato que grandes esforços vêm sendo empreendidos com o objetivo de implantar infra-estruturas capazes de disponibilizar água suficiente para garantir o abastecimento humano e animal e viabilizar a irrigação. Todavia, esses esforços ainda são, de forma global, insuficientes para resolver os problemas decorrentes da escassez de água, o que faz com que as populações continuem vulneráveis à ocorrência de secas, especialmente quando se trata do uso difuso da água no meio rural. De qualquer modo, a ampliação e o fortalecimento da infra-estrutura hídrica, com uma gestão adequada, constituem requisitos essenciais para a solução do problema, servindo como elemento básico para minimizar o êxodo rural e promover a interiorização do desenvolvimento.
Além de obras, a última década do século passado trouxe para o país um novo paradigma: a necessidade da gestão dos recursos hídricos. De fato, a partir dessa época, implantou-se nos estados, com o suporte da União e da Lei nº 9433/1997, a chamada Lei das Águas, uma nova filosofia: controle do uso por meio de instrumentos como outorga e da, ainda incipiente, cobrança pelo uso da água bruta; planos de recursos hídricos para as bacias hidrográficas e os estados; estruturação de entidades gestoras e organismos de bacia; e programas de obras estruturadoras.
Pode-se até afirmar que, em função das dificuldades históricas, os maiores avanços na gestão dos recursos hídricos, comparando-se as regiões do país, vêm ocorrendo no Nordeste.
CARACTERIZAÇÃO FÍSICA DO NORDESTE SEMI-ÁRIDO
O Nordeste do Brasil situa-se entre as latitudes 1º e 18º 30’ S e as longitudes 34º 30’ e 40º 20’ W e ocupa a área de 1.219.000 km2, que equivalem a aproximadamente um quinto do território brasileiro. A região abrange os estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, nos quais vivem 18,5 milhões de pessoas e dos quais 8,6 milhões estão na zona rural (Cirilo et al. 2007: 33).
O clima da porção semi-árida é caracterizado por um regime de chuvas fortemente concentrado em quatro meses (fevereiro-maio) e uma grande variabilidade inter-anual. As fortes secas que flagelam a região sempre moldaram o comportamento das populações e foram preponderantes para a formulação de políticas públicas regionais.
O denominado Polígono das Secas foi criado pela Lei nº 175 de janeiro de 1936, como área a ser objeto das políticas de combate às secas. O Polígono foi alvo de várias modificações, tendo sido, inclusive, inserido na Constituição Federal de 1946. Atualmente, o Polígono foi substituído pela Região Semiárida do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (MMA 2004). O Ministério da Integração Nacional (Brasil 2005, 2007) redefiniu os limites da região semi-árida do Nordeste.
POTENCIALIDADES HÍDRICAS REGIONAIS: ÁGUAS SUPERFICIAIS
O Nordeste semi-árido é uma região pobre em volume de escoamento de água dos rios. Essa situação pode ser explicada em função da variabilidade temporal das precipitações e
das características geológicas dominantes, onde há predominância de solos rasos baseados sobre rochas cristalinas e, conseqüentemente, baixas trocas de água entre o rio e o solo adjacente. O resultado é a existência de densa rede de rios intermitentes, com poucos rios perenes e destaque para os rios São Francisco e Parnaíba. Os rios de regime intermitente são encontrados na porção nordestina que se estende desde o Ceará até à região setentrional da Bahia. Entre estes, destaca-se o Jaguaribe, no Ceará, pela sua extensão e potencial de aproveitamento: em sua bacia hidrográfica encontram-se alguns dos maiores reservatórios do Nordeste, como Castanhão e Orós.
A potencialidade hídrica superficial é representada pela vazão média de longo período em uma seção de rio. Trata-se de um indicador importante, pois possibilita uma primeira avaliação da carência ou abundância de recursos hídricos de forma espacializada numa dada região.
A Figura 1 indica as potencialidades hídricas superficiais expressas por unidade de área (indicadas em litros por segundo por quilômetro quadrado) nas diferentes bacias hidrográficas da região, como resultado dos estudos hidrológicos desenvolvidos para o trabalho da ANA/MMA intitulado “Atlas Nordeste: abastecimento urbano de água” (ANA 2005).


POTENCIALIDADES HÍDRICAS REGIONAIS: ÁGUAS SUBTERRÂNEAS
No que se refere à ocorrência de águas subterrâneas, como o território nordestino é em mais de 80 % constituído por rochas cristalinas, há predominância de águas com teor elevado de sais captadas em poços de baixa vazão: da ordem de 1 m³ h-1. Exceção ocorre nas formações sedimentares, onde as águas normalmente são de melhor qualidade e pode-se extrair maiores vazões, da ordem de dezenas a centenas de m³ h-1, de forma contínua (Cirilo 2008). A Figura 2 mostra, de forma esquemática, a ocorrência dos aqüíferos no Nordeste.
Rebouças (1997) ressaltou, a partir de estudos anteriores, que as reservas de água doce subterrânea nas bacias sedimentares do Nordeste permitem a captação anual de 20 bilhões de m³ por ano, sem colocar em risco as reservas existentes. Esse volume equivale a 60 % da capacidade do reservatório de Sobradinho, na Bahia (34 bilhões de m³), principal responsável pela regularização das vazões do rio São Francisco; ou o triplo da capacidade do açude Castanhão (6,7 bilhões de m³). Trata-se, portanto, de volume considerável de água. Segundo Cirilo (2008), é necessário ressaltar, no entanto, as peculiaridades dessas reservas, que são:
• concentração espacial (no caso do semi-árido, Piauí e Bahia detêm os principais aqüíferos. No restante da região, as ocorrências são de manchas sedimentares esparsas);
• em muitos aqüíferos, a profundidade encarece o custo de implantação e operação dos poços (Chapada do Araripe, município de Bodocó, no lado pernambucano, há um poço com 950 m  de profundidade e capacidade de 140 m³ h-1, onde o nível dinâmico da água está a mais de 300 m abaixo da superfície do solo); e• existe muita incerteza sobre os mecanismos de recarga dos aqüíferos sedimentares do semi-árido, bem como sobre a dimensão dessa recarga; por essa razão, uma exploração intensiva pode colocar em risco essas fontes.
 



Pelas razões expostas, Cirilo (2008) afirmou que as águas subterrâneas devem ser, nas reservas sedimentares do semi-árido nordestino, usadas criteriosamente, de preferência para o abastecimento humano (diversas cidades do Nordeste situadas sobre as bacias sedimentares ou próximas a elas são abastecidas por essas fontes) e que não faz sentido considerar que essa potencialidade seja capaz de atender às demandas regionais, até porque seriam necessárias grandes transferências de água para isso. 
SAÚDE PÚBLICA
A incidência de doenças de veiculação hídrica associadas à má qualidade da água consumida por parte significativa da população do semi-árido, especialmente a que reside nas zonas rurais, e a precariedade ou inexistência de estruturas de tratamento de esgoto, reflete, principalmente, nos indicadores de mortalidade infantil na região. Costa (2009) desenvolveu pesquisa em que relacionou a queda significativa de doenças, como por exemplo a diarreia, sobre a população infantil de áreas rurais de Pernambuco, após a implantação de sistemas regulares de abastecimento de água ou mesmo de tratamento de água em sistemas simplificados. 
OCORRÊNCIA DE PROCESSOS DE DESERTIFICAÇÃO NO NORDESTE 
A Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD) conceituou desertificação como o processo de degradação das terras em regiões áridas, semi-áridas e sub-úmidas secas, em decorrência de fatores como a ação antropogênica e as mudanças climáticas. Essa degradação é a perda ou redução da produtividade econômica ou biológica dos ecossistemas secos causada pela erosão do solo, deterioração dos recursos hídricos e perda da vegetação natural.
De acordo com estudo do Ministério do Meio ambiente (BRASIL 2002: 42), as áreas do Nordeste com sinais extremos de degradação, os chamados “Núcleos de Desertificação”, são Gilbués no Piauí, Irauçuba no Ceará, Seridó na fronteira dos estados da Paraíba e Rio Grande do Norte e Cabrobó, em Pernambuco. Estima-se que o processo de desertificação vem comprometendo uma área de 181.000 km2 decorrente de impactos difusos e concentrados sobre o território da região. A super-exploração dos recursos naturais nessa região tem efeitos de médio prazo sobre a qualidade ambiental na região, onde predominam, como atividades econômicas, as culturas de subsistência, a pecuária extensiva e alguns perímetros de agricultura irrigada. Muitas áreas irrigadas apresentam sinais de salinização pela deficiência ou ausência de drenagem dos solos. Em cerca de 600 mil hectares irrigados no Nordeste registram-se sinais de salinização e/ou de compactação do solo em aproximadamente 30 % da área (MMA 2002). 
IMPACTOS POTENCIAIS DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS
O relatório do IPCC, Intergovernmental Panel on Climate Change, denominado IPCC AR4 (disponível no site http://ipcc-wg1.ucar.edu/) sobre as mudanças climáticas concluiu, com mais de 90 % de confiança, que o aquecimento global dos últimos 50 anos é causado pelas atividades humanas. Segundo Marengo (2007), os resultados deste estudo para a América do Sul indicam que as mudanças climáticas mais intensas para o fi nal do Século XXI, relativas ao clima atual, vão acontecer na região tropical, especificamente na Amazônia e no Nordeste do Brasil. Estas duas regiões são, portanto, as mais vulneráveis do Brasil às mudanças de clima.
Numa atmosfera mais aquecida espera-se, de modo geral, a ocorrência de precipitações pluviais mais intensas nas regiões mais úmidas, além de veranicos e ondas de calor mais freqüentes. Na região semi-árida, a maioria dos cenários de mudanças climáticas sinaliza para, com o aumento da temperatura: o aumento da evaporação nos corpos d’água e, conseqüentemente, a redução do volume escoado nos mesmos; a redução da recarga dos aqüíferos em até 70 % até o ano 2050 e, portanto, da realimentação da vazão dos rios; a concentração do período chuvoso em um espaço de tempo ainda menor, com redução da precipitação (cenário pessimista: para um aumento da temperatura de 2 a 4 ºC, 15 a 20 % a menos de chuva; cenário otimista: 1 a 3 ºC mais quente, 10 a 15 % de redução de chuva); a tendência de “aridização” da região, com a substituição da caatinga por vegetação mais típica de regiões áridas, como as cactáceas.
A alteração dos processos hidrológicos na região semi-árida pode significar diferentes tipos de prejuízos para as comunidades que vivem nessas regiões. Por exemplo, é provável que ocorra aumento da salinização da água subterrânea e superficial em virtude da elevação da evapotranspiração (Bates et al. 2008). Além disso, nas bacias hidrográficas dessas regiões, as conseqüências de mudanças no regime de vazões podem trazer prejuízos para a geração de energia hidroelétrica e para a manutenção de projetos de irrigação e abastecimento da população. Devem ser realizados estudos hidrológicos para predição e avaliação das conseqüências da mudança do regime de vazões e dos processos
hidrológicos nas bacias do Semi-Árido Nordestino. Pinto & Assad (2008) destacaram que na maior parte do Brasil a elevação da evapotranspiração deverá, com seu conseqüente reflexo na deficiência hídrica do solo, acarretar um crescimento do risco climático para a produção agrícola. Baseado em cenários do IPCC e simulações de cenários com as condições futuras para plantio de diferentes culturas, os referidos autores destacaram que o aumento de temperatura deverá diminuir o número de municípios com potencial agrícola nos anos de 2020, 2050 e 2070. Segundo ainda os mesmos autores, com a estimativa pelo IPCC de aridificação do semi-árido do Brasil e da perda da produtividade de várias culturas, deverão ser produzidas conseqüências do ponto de vista de segurança alimentar na região.
SOLUÇÕES PARA PROBLEMA DA ÁGUA NO SEMI-ÁRIDO NORDESTINO 
As secas e suas conseqüências 
Desde os primórdios, as secas marcaram a história do Nordeste. Fernão Cardin (citado por Souza 1979) relata que houve uma grande seca e esterilidade na província (Pernambuco) e desceram do sertão, ocorrendo-se aos brancos no litoral cerca de quatro ou cinco mil índios. Também merece destaque a citação ao Professor João de Deus de Oliveira (Paulino 1992) que relata movimentos dos Tabajaras e Kariris acossados pelas secas. Depreende-se dessas narrativas que os movimentos migratórios já aconteciam dos sertões já aconteciam mesmo em uma época de baixa densidade demográfica.
A ocupação dos sertões foi bastante retardada em decorrência, principalmente, das secas. Contudo, após uma carta régia, os criadores de gado tiveram que adentrar os sertões. De 1845 a 1876, aconteceram 32 anos sem secas intensas, que resultaram no aumento das populações e dos rebanhos sem o aumento da infra-estutura hídrica. Veio, então, uma seca intensa e duradoura de 1877 a 1879, que resultou em trágica mortandade da região com estimativa de cerca de 500.000 óbitos. Foi a partir desse choque que atingiu a sociedade brasileira que começou uma busca de soluções estruturais (Campos & Studart 1997). Foi nessa seca, que se atribui a Dom Pedro II a frase: “venderei a última pedra da minha coroa antes que um nordestino venha a morrer de fome”.
De qualquer maneira, foi a partir dessa tragédia que ações mais efetivas, ainda em ritmo lento, começaram a ser tomadas. O açude Cedro no Ceará, hoje um monumento histórico de baixa capacidade hidrológica, foi iniciado ainda na época do Império.
A busca de soluções
O enfrentamento do problema da escassez de água de qualidade no semi-árido não se deu através de uma solução única. A implantação de infra-estruturas hidráulicas, isoladas ou combinadas, constituem as ações necessárias para mitigar a problemática da água no semi-árido.
A definição de infra-estrutura adequada e de estratégia de ação ou de gestão deve buscar o aumento da disponibilidade pelo aumento da eficiência do uso e controle da demanda e do desperdício, notadamente no que se refere à irrigação.
As infra-estruturas podem ser agrupadas para atender dois tipos de demanda: a demanda concentrada e a demanda rural difusa. Na primeira, por exemplo, nas cidades e perímetros de irrigação grandes vazões são supridas e distribuídas entre usuários próximos uns dos outros. Na demanda rural difusa, há uma dispersão espacial muito grande e as soluções são específicas.
Vamos iniciar pelos problemas regionais associados ao clima para contextualizar as soluções praticadas e propostas.
Perfuração de poços
No Nordeste, estima-se que cerca de 100.000 poços tenham sido perfurados. Pelo fato de a maior parte da região semi-árida do Nordeste ser de formação cristalina, poços usados como solução para o suprimento das diferentes necessidades estão sujeitos às seguintes limitações:
• baixas vazões, na maioria dos casos até 2 m3h-1;
• teores de sais superior, em parcela significativa dos poços, ao recomendado para consumo humano; e

• altos índices de poços secos, dadas as peculiaridades geológicas.

Os poços
perfurados no cristalino têm profundidade da ordem de 50 m ao passo que nas bacias sedimentares as profundidades são variadas, na maioria dos casos entre 100 e 300 m.


A perfuração de poços em solos cristalinos tem sido feita em conjunção com dessalinizadores de osmose reversa para a demanda rural. Em áreas sedimentares, tem sido usada para atender ou complementar a demanda das cidades.
Não obstante os dessalinizadores se mostrem eficazes na melhoria da potabilidade da água, problemas precisam ser gerenciados, como segue: destinação do rejeito proveniente da salinização, alto custo de manutenção e logística de operação complexa. Para a destinação do rejeito, algumas soluções têm sido adotadas, como: uso de tanques com lâminas d’água delgada para incremento da velocidade de evaporação e a conseqüente deposição de sais; acumulação em tanques para a criação de peixes como tilápia rosa e camarão marinho; cultivo de Atriplex num-mularia, planta com grande capacidade de absorção de sais, originária da Austrália e introduzida, com sucesso, no Chile, apresentando-se como excelente forrageira, que contém entre 16 e 20 % de proteínas e tem uma sobrevida de até 20 anos (Montenegro & Montenegro 2004, Porto et al. 2006).
Cisternas rurais
A construção de cisternas para guardar água de chuva é natural e intuitiva e tem, por isso, sido praticada há milênios. Há registros de cisternas de mais de dois mil anos em regiões como a China e o deserto de Negev, hoje território de Israel e Jordânia (Gnadlinger 2000).

As cisternas com capacidade de acumulação normalmente entre 7 e 15 m3 representam a oferta de 50 litros diários de água durante 140 a 300 dias, admitindo que esteja cheia no final da estação chuvosa e nenhuma recarga tenha ocorrido no período. Tomados os devidos cuidados com a limpeza do telhado, da cisterna, da calha e da tubulação, é uma solução fundamental para o atendimento das necessidades mais essenciais da população rural difusa. Embora existam aos milhares, espalhadas por todo o Nordeste, a quantidade de cisternas ainda é ínfima quando comparada à necessidade da população rural difusa.
Contudo, deve-se ter em mente que no clima do semi-árido a cisterna não consegue, sem outras fontes, dar sustentabilidade às populações. Deve ser usada como parte da solução para as populações difusas. Um exemplo dessa limitação está na instalação dos Jesuítas em Dom Maurício, no município de Quixadá. Os Jesuítas estabeleceram-se na área no final do século XVIII e construíram um convento/colégio com sustentação hídrica baseada em um conjunto de grandes cisternas. Na seca de 1915, eles fecharam o convento/colégio por absoluta falta de água. Atualmente, o convento é administrado por freiras que utilizam as cisternas em conjunto com outras fontes de água, como um pequeno açude das proximidades.
Barragens subterrâneas
As barragens subterrâneas justificam-se pela necessidade de incrementar a acumulação das águas nos aqüíferos aluviais das bacias de rios intermitentes. O regime de precipitações com chuvas em geral de curta duração e elevada intensidade e a limitada capacidade de infiltração do solo faz com que boa parte dessa precipitação seja perdida por rápido escoamento superficial. Dispositivos comuns de captação do escoamento superficial nessas bacias hidrográficas constituem os açudes e barreiros que, devido às altas taxas de evaporação características do semi-árido, têm parte significativa de seu volume armazenado perdido antes da utilização. A evaporação também tende, nesses
casos, a incrementar a salinidade das águas captadas nesses dispositivos, tornando sua utilização imprópria para diversos fins.  A barragem subterrânea promove a infiltração e o armazenamento da água de chuva no depósito aluvial, com maior proteção à evaporação e à salinização quando comparada com os açudes e barreiros (Costa et al. 2000). Apesar de ser uma tecnologia bem antiga e de simples execução, não vinha sendo aplicada no Brasil como um tipo de obra hídrica estruturadora. Diversos estados do Nordeste vêm construindo barragens subterrâneas, a exemplo de Pernambuco, Paraíba e Bahia.
Reaproveitamento/tratamento de águas servidas
De forma geral, a destinação de esgotos com baixo ou nenhum tratamento ainda continua sendo os corpos d’água. As conseqüências são: poluição, doenças de veiculação hídrica, destruição da biodiversidade e redução da disponibilidade de água potável. A disposição de nutrientes, principalmente nitrogênio e fósforo, em rios e reservatórios tem resultado na eutrofização de mananciais e na floração de algas tóxicas chamadas cianofíceas, que constituem verdadeiras pragas para os reservatórios. Essas algas liberam toxinas (neurotoxinas e hepatotoxinas) que podem causar sérios danos à saúde humana, até mesmo a morte. O tratamento da água é, além de difícil, extremamente dispendioso.

No Nordeste, o reuso de água para atividades industriais vem surgindo em setores como, por exemplo, na produção de confecções. Ainda é muito tímida resumindo-se, praticamente, a projetos-piloto e à reutilização de efluentes sanitários, tratados ou não, para atividades agrícolas.
Um dos agravantes desse problema é a construção de sistemas de distribuição de águas sem destinação apropriada para as águas usadas. Os pequenos reservatórios são particularmente vulneráveis a esse problema. A intermitência dos rios limita, drasticamente, o poder de autode-puração dos mesmos. Esse é um tema onde ainda há muito campo para pesquisas.
Campello Netto et al. (2007: 494) comentaram que, em certos países, como Israel, razões culturais e déficit hídrico favorecem a aplicação de resíduos ao solo em vez de descarregá-los nos corpos d’água. A aplicação de resíduos orgânicos na agricultura tem recebido maior atenção por causa dos custos e dos problemas ambientais associados com a disposição de resíduos, além de, como citado, da baixa disponibilidade de água limpa para os processos de produção.
No Nordeste, o reuso de água para atividades industriais vem surgindo em setores como, por exemplo, a produção de confecções. Hespanhol (2003) destacou que, nas condições de escassez de água no Nordeste semi-árido, pode-se salientar como palavras-chave em termos de gestão o reuso e a conservação; o autor analisou o potencial de reuso de água no Brasil para diversos fins, particularmente para os não potáveis. Ainda é muito tímida e praticamente se resume a projetos-piloto, a reutilização de efluentes sanitários, tratados ou não, para atividades agrícolas.
Transporte de água a grande distância
No que se refere ao abastecimento humano nas cidades do semi-árido que não dispõem de mananciais próximos, a construção de adutoras é a solução mais adequada, seja a partir de reservatórios de maior porte, seja a partir de poços em áreas sedimentares (com maior restrição para que sejam identificadas as potencialidades dessas reservas no que tange, principalmente, aos mecanismos de recarga), ou mesmo a partir de rios e reservatórios mais distantes, mesmo em outras bacias hidrográficas, configurando as chamadas transposições ou transferências de água entre bacias.
Grandes aduções foram construídas ou estão em construção ou projetadas para abastecer as cidades do semi-árido. Por exemplo, o Canal da Integração, no Ceará, em fase de conclusão, deve conduzir águas da bacia do Jaguaribe por 225 km, a partir do reservatório Castanhão até Fortaleza. Daí, as águas são distribuídas por toda a Região Metropolitana de Fortaleza, incluindo a área do Porto de Pecém.


Outra situação hoje vivenciada é o início das obras para transposição de águas do rio São Francisco (BRASIL 2000) para os estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Segundo o Ministério da Integração Nacional, no final do projeto haverá retirada contínua de 26,4m³ s-1 de água, equivalentes a 1,4 % da vazão garantida pela barragem de Sobradinho (1.850 m³ s -1). Esta vazão será destinada ao consumo da população urbana de 390 municípios do Agreste e do Sertão dos quatro estados do Nordeste Setentrional. Nos anos em que o reservatório de Sobradinho estiver vertendo, a vazão aduzida poderá chegar a 127m³ s-1.
O chamado Eixo Norte da transposição foi projetado para uma capacidade máxima de 99 m³s-1 e deverá operar com uma vazão contínua de 16,4 m³ s-1, destinada ao consumo humano.
Os volumes excedentes transferidos serão armazenados em reservatórios existentes nas bacias receptoras. No Estado de Pernambuco, os Eixos Norte e Leste servirão, ao atravessarem o seu território, de fonte hídrica para sistemas adutores existentes ou em projeto, responsáveis pelo abastecimento de populações do Sertão e do Agreste.
CONCLUSÕES
O fortalecimento da infra-estrutura hídrica do Nordeste como política de convivência com as secas tem sido praticado desde os tempos do Império. Muito já foi construído e não se tem mais a vulnerabilidade do início do século passado. Contudo, ainda há muito a ser feito. Há necessidade, também, de tornar os investimentos mais eficientes. Há ainda, entretanto, um grande segmento da população rural que vive em condições vulneráveis e com baixo acesso a água de boa qualidade.
Para elaborar uma boa política, é importante que se entenda a particularidade das soluções.
Não se pode imaginar que grandes canais e adutoras irão abastecer as populações rurais difusas, exceto aquelas próximas ao traçado das obras. Portanto, cisternas, pequenos reservatórios, poços, dessalinizadores devem ter seu uso ampliado e melhorado, particularmente no que tange à sua operação e manutenção. Pequenos açudes e barragens subterrâneas devem, onde for adequado, ser empregados para fomentar a agricultura familiar de forma sazonal. A piscicultura nos grandes reservatórios é fonte importante de alimentação e renda, respeitados os limites para evitar a eutrofização dos mesmos.
Com a prática da gestão de recursos hídricos, fomentada através da Lei nº 9.433, ações emergenciais devem ser substituídas por ações de planejamento e gestão da água de forma integrada, participativa e descentralizada, em apoio às ações dos órgãos gestores locais, estaduais e organizações não governamentais. Em essência, o que todos queremos para o Brasil é um país justo, desenvolvido e ambientalmente correto. Contudo, um país meio desenvolvido é um país subdesenvolvido. Assim, a continuação de políticas públicas para reduzir as desigualdades regionais é ainda uma tarefa para políticos e governantes. A busca pelo correto entendimento dos processos e políticas regionais é a colaboração que os pesquisadores e cientistas podem dar.
REFERÊNCIAS CITADAS
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