1 de jun. de 2014

EFEITOS COLATERAIS DA GENÉTICA DE ALTA PRODUÇÃO

Por FERNANDO ENRIQUE MADALENA: Professor da Escola de Veterinária da UFMG, Belo Horizonte, MG, Eng. Agrônomo, Ph.D. Melhoramento Animal (Univ. of Edinburgh). Foi Oficial Superior de Melhoramento Animal e Recursos Genéticos da FAO, Roma, Diretor do Projeto FAO/EMBRAPA/PNUD no Centro Nacional de Pesquisa-Gado de Leite, Coronel Pacheco, MG, técnico da FAO e do IICA no México, Vietnã e Equador, Professor Visitante na USP-Ribeirão Preto e na EPAMIG e Professor na Faculdade de Agronomia do Uruguai. Tem trabalhado em pesquisa de cruzamentos e seleção de gado de leite, de corte e de dupla aptidão.
 
Há uma grande preocupação no mundo todo com a queda continuada da fertilidade e da saúde do gado leiteiro de alta produção. Na recente Conferência da FAO, em Interlaken, em setembro passado, sobre o estado mundial dos recursos genéticos animais, o Interbull organizou Simpósio sobre o tema "Quão sustentáveis são os programas de melhoramento das principais raças de gado de leite internacionais?", no qual me coube fazer apresentação, em que se baseia este artigo. 

Deterioração da fertilidade e da saúde
Nas últimas décadas, a produção de leite por vaca teve um aumento substancial nos países do primeiro mundo, de onde provém a genética usada no Brasil, mas, como pode ser observado na Figura 1, esse aumento da produção foi acompanhado por importante deterioração da fertilidade.
Figura 1. Evolução da produção de leite por lactação (Leite), intervalo de partos (IEP) e número de serviços por concepção (S/C) nos EUA.
 
Fonte: Lucy, 2001.
A prevalência de doenças também tem aumentado e é motivo de preocupação. Por exemplo, Zwald et al (2004) comunicaram incidência de deslocamento do abomaso de 3% de casos por lactação, 10% de cetose, 20% de mamite, 10% de claudicação, 8% de cistos ovarianos e 21% de metrite, em vários estados dos EUA.

Redução da vida útil e aumento da mortalidade
Os problemas de fertilidade e doenças refletem na redução da vida útil e aumento da taxa de descarte, bem como no aumento da mortalidade. Estes parâmetros têm atingido valores insustentáveis, tendo a vida útil caído, nos EUA, para 2,8 lactações por vaca, ou 32 meses, o que requer reposição de 38% do rebanho, cifra inatingível a não ser com sêmen sexado. Com tanto descarte, 61% do rebanho é de vacas de primeira e segunda cria, que são menos produtivas que as adultas. Apenas 12 a 20% desse descarte é devido à baixa produção, sendo o resto devido a infertilidade e doenças. Por outro lado, a taxa de mortalidade de vacas passou de menos de 2% ao ano para 6 a 11%, dependendo da região.

Também no Brasil, como em outros países importadores de genética de alta produção, os problemas de fertilidade são notórios. Por exemplo, Vasconcelos et al. (2007) relataram taxas de concepção de 17 a 25%, em vacas, em fazenda modelo em São Paulo. Wolff et al. (2004) verificaram aumento no intervalo parto-primeiro cio de vacas Holandesas, no Paraná, no decênio 1991-2000. Vida útil de apenas 2,7 lactações foi relatada para fazendas em Castro, PR (Balde Branco, 2003). Molina et al. (1999) comunicaram prevalência de 30,3% de vacas com afecções podais, concluindo que "as afecções podais em vacas em lactação confinadas constituem um sério problema em fazendas na bacia leiteira de Belo Horizonte".

Antagonismo genético entre a produção e a fertilidade e saúde
A seleção para maior produção de leite aumenta também a capacidade de consumo de alimento, mas, tal aumento não é o suficiente para atender totalmente os requerimentos energéticos adicionais, decorrentes do aumento da produção, especialmente nas primeiras semanas após o parto, ocasionando, então, balanço energético negativo e maior mobilização de reservas corporais, o que provoca diminuição da fertilidade e aumento de doenças como mamite, febre do leite, cetose e outras.

Em estudo com mais de 118 mil lactações, na raça Holandesa, no Brasil, Silva et al. (1998) verificaram forte correlação genética desfavorável (rg = 75%) entre a produção de leite na primeira lactação e o primeiro intervalo de partos, estimando que para cada 200 kg de ganho genético na produção, aumentar-se-iam 7,9 dias no intervalo.
Infelizmente, o antagonismo genético entre produção e fertilidade encontrada no Holandês persiste também em populações de gado mestiço, segundo resultados de Silva et al. (2001) e Grossi e Freitas (2002).

O balanço energético negativo é determinado geneticamente e não se resolve com nutrição
Segundo Lucy (2005) existe consenso de que o desempenho reprodutivo da vaca de leite é influenciado por ponto característico de condição corporal, geneticamente determinado, ao qual ela migra, depois de iniciada a lactação, através da utilização do tecido adiposo, cuja perda dependeria desse ponto característico e da massa de tecido adiposo disponível, e não das exigências nutricionais. A seleção para maior produção produziu vacas com maior predisposição genética para direcionar os nutrientes para a produção de leite, ao invés de formar gordura corporal, o que é regulado através de mecanismos hormonais. Conseqüentemente, segundo Chagas, et al. (2007), "mesmo quando o consumo de nutrientes é aumentado em altos níveis, o resultado é simplesmente um aumento na produção, sem necessariamente melhorar o desempenho reprodutivo".

Vacas mais angulosas tem pior condição corporal, menor fertilidade e mais doenças
Infelizmente, durante dezenas de anos, tem se inculcado a produtores e técnicos que vaca leiteira tem que ser angulosa, tendo-se selecionado intensamente para esta característica, junto com outros componentes do tipo. De fato, ao se selecionar para maior angulosidade se melhora sim a produção, mas, por outro lado, também se seleciona contra a fertilidade, porque a maior angulosidade implica em pior condição corporal, um indicador de como a vaca estoca e mobiliza, durante a lactação, sua reserva de energia no tecido adiposo. Condição corporal adequada é reconhecidamente necessária para a reprodução eficiente
Na Fig. 2 se apresenta um exemplo da correlação negativa entre o valor genético para intervalo de partos e a condição corporal, sendo que os reprodutores que transmitem pior condição corporal tendem a transmitir intervalos de partos maiores, e vice-versa.
Figura 2. Relação entre os valores genéticos de reprodutores Holstein, no Reino Unido, para escore de condição corporal e intervalo de partos. Cada ponto representa os valores genéticos de um reprodutor.
 
Fonte: Pryce et al. (2000).
Também tem sido verificado antagonismo genético entre angulosidade e prevalência de doenças, o qual é atribuído ao estresse metabólico, decorrente do balanço energético negativo. Estes fatos têm levado às Associações de Criadores a reverter a seleção, procurando-se agora selecionar os animais com pior forma leiteira, os menos angulosos. Parece brincadeira. O certo mesmo seria esquecer a ilusão da seleção por tipo e selecionar diretamente pelas características econômicas.

Vacas grandes comem mais, mas, não dão mais leite
A seleção de animais de grande tamanho é anti-econômica, uma vez que o tamanho tem quase nula correlação genética com a produção (VanRaden et al., 2006), mas, obviamente, aumenta os requerimentos de nutrientes para mantença.

Na Tabela 1 se apresentam os resultados de experimento de seleção para tamanho na Universidade de Minnesota, onde as vacas de linhagem selecionada para maior tamanho não produziram mais leite que as selecionadas para tamanho menor, de forma que a margem econômica do alimento ("income over feed cost") foi maior para a linhagem "pequena", que também apresentou maior fertilidade e dias em produção.
Os autores concluíram que a seleção deveria ser praticada com base nas características econômicas, entretanto, segundo eles, a seleção para menor tamanho, que implicaria em sacrificar um pouco de seleção para produção, poderá não ser necessária nos EUA enquanto houver "fácil aceso a alimentos relativamente baratos". Eis a confirmação de mais uma perversidade do regime de subsídio à produção.
Tabela 1. Resultados da seleção para tamanho, em Holstein, por três gerações, usando-se, a cada ano, sêmen comercial dos três reprodutores de maior e menor valor genético para tamanho, dentre a metade dos reprodutores de maior PTA para produção disponíveis nos EUA.
 
Fonte: Hansen et al. (1999).
No Brasil, onde os
concentrados não são subsidiados e os níveis econômicos de produção por vaca são muito menores que na América do Norte e Europa, as despesas para mantença representam maior proporção do custo que naquelas regiões, e, conseqüentemente, o peso das vacas adquire maior importância econômica negativa. Pesquisas do nosso grupo na UFMG demonstraram ser mais importante economicamente reduzir 1% o peso das vacas que aumentar 1% a produção de leite (Lôbo et al., 2000, Vercesi Filho et al., 2000, Martins et al., 2003).

Antagonismo genético entre a produção e a tolerância ao calor
Calor e umidade são reconhecidamente prejudiciais para a reprodução do Bos taurus, e seus efeitos são agravados pela alta produção de leite. Trabalhos conduzidos na Universidade de Georgia têm verificado antagonismo genético entre a produção e a tolerância ao calor. Bohmanova et al. (2005) compararam os PTA dos 100 reprodutores com menor e com maior PTA para tolerância ao calor, dentre mais de 172 mil reprodutores Holstein dos EUA, verificando que os 100 menos tolerantes ao calor apresentavam maior produção de leite (+1124 kg/lactação), menor fertilidade e menor vida produtiva que os 100 mais tolerantes. Segundo os autores, a seleção continuada para maior produção, sem considerar a tolerância ao calor, resultará em diminuição desta última característica.

Endogamia globalizada
Um outro problema que causa perda de fertilidade e saúde é o aumento da endogamia, que, no caso do Holandês, decorreu do uso intensivo de reprodutores famosos em nível mundial. Segundo Funk (2006) a endogamia média no rebanho Holandês dos EUA passou de 2,7% em 1970 para 6,8% em 2000, com previsão de aumento para 8,2% em 2010 e 9,7% em 2020. Devido ao intenso uso dos reprodutores famosos como pais das novas baterias de touros em teste, houve um gargalo na genética disponível. Por exemplo, dos mais de 73.000 touros avaliados pelo Interbull no mundo, nascidos em 1990, metade eram filhos de apenas cinco pais.

Como a genética das principais raças de leite está globalizada, através de importações de sêmen e embriões, o gargalo genético se estende a todos os países. Van Doormaal et al. (2005) relataram que quase todos (entre 94,2 e 99,7%) os reprodutores aprovados em 12 países da América do Norte e Europa, nascidos em 1999, eram descendentes de Round Oak Round Apple Elevation, e entre 24 e 85% eram também descendentes de seu filho, Hanoverhill Starbuck. Na Nova Zelândia e na Irlanda o percentual de descendentes de Elevation era um pouco menor, 89 e 82%, respectivamente. Assim, devido a globalização da genética nas raças leiteiras internacionais, há, infelizmente, poucas possibilidades de se fugir da endogamia, em se mantendo as tendências de seleção vigentes.
No Brasil, o parentesco com antecessores famosos foi o fator que mais influenciou os preços do sêmen importado (Madalena et al., 1985), e Elevation já contribuía, naquela época, com 12% dos genes dos doadores de sêmen de Holandês importado. Este reprodutor e Pawnee Arlïnda Chief foram os avôs paternos de 24% e 22%, respectivamente, de mais de 82 mil vacas analisadas por Zambianchi (2001), ou seja, os dois reprodutores contribuíram na herança genética de 46% dos animais da raça Holandesa estudados.

"Solucionática"
As ferramentas para solucionar os problemas apontados passam todas pela correção do rumo equivocado, e consistem no o uso de:
Cruzamentos entre raças, p. ex. com Jersey (mas, qual Jersey, o da América do Norte ou o da Nova Zelândia?), ou, com as raças Vermelha Sueca ou Norueguesa (muito promissoras, mas ainda não testadas no Brasil). A superioridade econômica do cruzamento tríplice de Jersey/Holandês/Gir, no caso de abate dos machinhos, foi verificada por Teodoro e Madalena (2005).

Linhagens diferentes de Holandês, sendo a opção mais óbvia a do Friesian da Nova Zelândia, que ainda tem alguns animais sem contaminação pelo Holstein (mas também não devidamente testada no Brasil).
Reprodutores, dentro de cada raça, que aumentem o lucro, o que implica que o produtor ou seu assessor técnico elabore o seu índice econômico de seleção e adquira sêmen dos reprodutores superiores para aquele índice (mas, isto último é só uma possibilidade teórica, pois inexiste sêmen a venda de reprodutores testados no Brasil para todas as características de interesse econômico).
Em todo caso, nenhuma ação deveria ser tomada sem o respaldo de pesquisa competente prévia. O Brasil já vem correndo atrás do prejuízo e simplesmente não pode se dar ao luxo de ignorar o que faz com o principal recurso genético utilizado para a produção de leite.

Referências:

As referências bibliográficas citadas se encontram nos trabalhos seguintes:

Madalena, F.E. Problemas dos rebanhos leiteiros com genética de alta produção - Revisão bibliográfica. 2007a. http://www.fernandomadalena.com

Madalena, F.E. Comparações entre o Friesian da Nova Zelândia e o Holstein internacional - Revisão bibliográfica. 2007b. http://www.fernandomadalena.com

Madalena, F. E. 2008a. How sustainable are the breeding programs of the global main stream dairy breeds? - The Latin-American situation. Livestock Research for Rural Development. Volume 20, Article # 19. http://www.cipav.org.co/lrrd/lrrd20/2/mada20019.htm

Madalena, F. E. 2008b. A esquecida metade Bos taurus do F1. Anais do 6o. Encontro de Produtores de Gado Leiteiro F1. BHTE, Abril 2008 (no prelo).

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